Uma ampla coalização de entidades está convocando, para o domingo, 3 de novembro, na Praça do Parlamento, em Londres, a Marcha para reivindicar do governo Água Limpa em todo o Reino Unido.
A insatisfação com o desempenho das empresas privadas de água e esgoto na Inglaterra foi potencializada com a vacilação do novo governo trabalhista em enfrentar as causas de uma crise que se aprofunda nos últimos anos. Na verdade, mais um ato da tragédia que se iniciou com o processo de privatização iniciado há 35 anos por Margareth Thatcher.
Não foram feitos os investimentos necessários para expandir capacidades e modernizar as infraestruturas, o que generalizou a poluição causada por extravasão de esgotos não tratados nos rios e costas e provocou o aumento das perdas de água. As contas dos usuários não param de subir, mas mesmo assim não foram realizados os investimentos para aumentar a resiliência dos sistemas em face das mudanças climáticas.
Ao ser informada que as contas de água das empresas que representa podem aumentar quase 30% acima da inflação até 2030, a Federação de Pequenas Empresas (FSB) acusou as empresas privadas de água de sobrecarregá-las com o custo de “erros históricos” cometidos por dirigentes de um setor atingido por escândalos. Já o regulador econômico, o Ofwat, afirma que que os aumentos nos próximos cinco anos se justificam para pagar os investimentos necessários nos serviços de água e esgotos.
A insatisfação com o desempenho da prestação é generalizada. Segundo The Guardian, as reclamações dos usuários não resolvidas na Inglaterra e no País de Gales atingiram o nível mais alto da década, sendo constatado um aumento de 29% em 2023-24 nas queixas encaminhadas ao Conselho de Consumidores de Água (CCW) por famílias que não conseguiram obter uma solução por parte de seu prestador, disse o órgão regulador.
O aumento foi impulsionado pela insatisfação dos consumidores com extravasões de esgoto, erros de cobrança e problemas com hidrômetros. A dimensão dos eventos de poluição por esgotos não tratados, as remunerações escandalosas dos dirigentes das empresas e a priorização do pagamento de dividendos aos seus acionistas em detrimento da realização dos investimentos necessários alimenta hoje iniciativas de boicote ao pagamento das contas pelos usuários.
Segundo matéria do jornal The Guardian nas últimas três décadas, as empresas de água inglesas pagaram £ 53,1 bilhões em dividendos – £ 83 bilhões em preços atuais (equivalente a R$ 592 bilhões) – e acumularam dívidas astronômicas que totalizam £ 60,3 bilhões (correspondente a R$ 430 bilhões). Para efeito de comparação, o orçamento da cidade de São Paulo para 2025 é de R$ 119 bilhões.
A Thames Water, a maior das empresas privatizadas, acumulou dívidas de £ 15 bilhões e enfrenta graves problemas de liquidez, com possibilidade de quebra do caixa já em dezembro. Na primeira semana de outubro, a Thames Water sofreu mais um golpe quando sua dívida foi classificada como lixo pelas agências S&P Global Ratings e a Moody’s. Desde julho, a empresa está sob “medidas especiais” estabelecidas pelo Ofwat. Em agosto, a Thames Water alertou que para sobreviver precisa de um aumento de 59% na conta nos próximos cinco anos.
Do ponto de vista de vários movimentos sociais o equacionamento de tão grave situação passa necessariamente pela intervenção governamental denominada “special administration” e prevista legalmente no Water Industry Act de 1991, para que o governo possa promover as reformas necessárias no setor. Com a intervenção o governo assumiria o controle da Thames e de outras empresas falidas, removendo diretores da empresa e suspendendo os dividendos pagos aos acionistas. As empresas poderiam então ser transferidas para novos proprietários que poderiam ser de privados ou controlados publicamente.
A intervenção é também defendida publicamente pelo Prof. Ewan McGaughey do King’s College London que afirmou que a administração especial não custaria nada ao Tesouro ou aos contribuintes, contradizendo declaração do Secretário (ministro) do Meio Ambiente, Steve Reed. McGaughey acusou o secretário do novo governo trabalhista de estar se apoiando em uma análise “economicamente analfabeta”, paga pelas próprias empresas de água, para rejeitar os pleitos de levar as empresas do setor de volta à propriedade pública.
McGaughey disse que o administrador especial pode submeter ao tribunal superior um plano para cancelar a dívida de uma empresa, se pagamentos contínuos aos bancos interferirem na execução adequada das funções de prestar adequadamente os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.
E mais: “A melhor maneira de limpar nossa água é com mais investimento. Quarenta por cento a mais de investimento seria possível se parássemos de socorrer bancos e acionistas com aumentos de contas. Custará mais de £ 12,5 bilhões continuar a pagar acionistas e bancos… a maneira certa de fechar esse buraco negro é fazer com que as empresas falidas percam suas licenças, suas dívidas sejam canceladas e seja feita a transição para o controle público… tudo isso é possível sob a lei existente.”
O Professor de Política Econômica na Universidade de Oxford, Dieter Helm, é outra voz que defende a intervenção urgente na Thames Water por meio de “special administration”. E avalia que a postergação da intervenção joga lenha na fogueira da renacionalização de todo o setor:
“À medida que a saga da Thames Water se arrasta continuamente, a pouca fé que os clientes e contribuintes possam ter de que a empresa vai resolver os seus problemas continua a diminuir. No final, o público vai exigir a renacionalização e, nas próximas eleições, em 2028 ou 2029, isso estará inevitavelmente na cédula de votação. Afirma Helm: …a via de administração especial é provavelmente a única forma de reestruturar a Thames e recomeçar de forma limpa, com capacidade de captar recursos. A administração especial é o caminho para tornar a Thames e o setor capazes de receber investimentos a médio e longo prazo. A tragédia é que o governo e o Ofwat provavelmente continuarão a tentar todas as formas possíveis evitar a administração especial e, no processo, apenas farão acontecer o seu pior medo: a renacionalização.”
No início de setembro o secretário do Meio Ambiente, Steve Reed, anunciou o projeto de nova legislação antipoluição a ser aplicada na Inglaterra e no País de Gales para “acabar com o comportamento vergonhoso das empresas de água e seus dirigentes”. As novas leis deverão dar maiores poderes aos reguladores para lidar com empresas poluidoras e facilitar que elas sejam multadas, vedam o pagamento de dividendos aos dirigentes das empresas inadimplentes com a legislação e possibilitam enviá-los para a prisão.
Mas, segundo informa a BBC, ativistas ambientais criticaram a nova legislação, dizendo que ela vem para evitar uma intervenção governamental mais decisiva no setor. Eles apontaram que já há uma violação generalizada dos regulamentos e disseram que o verdadeiro problema era a falha do regulador de água, o Ofwat, e da Agência Ambiental em aplicá-las adequadamente.
O fato é que as postergações e vacilações do governo trabalhistas estão fazendo as entidades e movimentos se articularem e assumirem posições mais decididas. Assim uma ampla coalização de entidades está convocando, para o domingo, 3 de novembro, a Marcha para reivindicar do governo Água Limpa em todo o Reino Unido, na Praça do Parlamento, em Londres.
Saiba mais sobre a Marcha pela Água Limpa em: https://marchforcleanwater.org/e https://www.instagram.com/marchforwater/
Leia artigo publicado pelo Ondas sobre a crise das empresas privadas na Inglaterra: https://ondasbrasil.org/na-inglaterra-as-privadas-atolaram/
Por Marcos Helano Montenegro, via Ondas (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento)
Foto de capa: marchforwater